A experiência jurídica

Não há Deus de um povo só. O Deus budista, cristão e muçulmano é um só e universal, pois somos todos iguais.

Ao produzirem, para viver, os homens usam instrumentos, aplicam conhecimentos, inventam técnicas, agregam experiências que, em última análise, decidem sobre o tipo de relações que haverão de manter entre si. O homem é, antes de tudo, um ser de necessidades ou homo necessitudinis. Para satisfazer às suas necessidades básicas, sempre presentes, sempre prementes, tem que agir, isto é, trabalhar. Eis o homo faber. Destarte, para satisfazer às suas necessidades, o homem “trabalha” a natureza, humanizando-a. Catando frutos, caçando, pescando, plantando, domesticando animais, minerando ou transformando metais, industrializando as matérias-primas ou comerciando, o homo faber arranca da natureza sustento para a sobrevivência com o “suor do rosto”. Ao trabalhar, constrói a si próprio, sobrevive. A história nada mais é do que a história do homem e de seu fazer pelos tempos adentro. Seria impossível entendê-la, e as sociedades que sucessivamente engendrou, sem referi-las fundamentalmente às relações de produção, que o modo de produzir dos homens em cada época e de cada lugar tornou plausíveis. As relações sociais, econômicas e culturais da sociedade primitiva, da sociedade grega, romana, árabe ou visigótica, da sociedade medieval, da sociedade capitalista foram condicionadas por diferentes estruturas de produção. Ora, todas essas sociedades, como de resto todas as comunidades humanas, atuais e pretéritas, foram e são articuladas juridicamente.

A experiência jurídica - artigo de Sacha CalmonFenômeno do mundo da cultura, o direito está inegavelmente enraizado no social. Contudo, embora o discipline, paradoxalmente, é um seu reflexo. Isso porque é radicalmente instrumental. Mas o fenômeno jurídico não se reduz ao puro instrumento normaltivo.

Este seu caráter instrumental – técnica aperfeiçoada que é de obtenção de comportamentos – tem levado os juristas, com desespero, a gritar que o direito preexiste ao Estado, sua fonte, e que existe à margem e até mesmo contra a lei, seu veículo. E, por isso, “nem tudo que é legal justo é”. Por certo, tiranias e injustiças do pretérito e do presente, a Leste e a o Oeste, sustentam esse grito. O direito jamais foi sinônimo de justiça. A lei tem sido aqui e alhures, agora como antanho, mais um instrumento de reprimenda do que de libertação. As “ordens positivas” são feitas pelos “donos do poder”, pouco importando a ideologia que professem.

Lewis H. Morgan (Morgan, Lewis H. La Sociedad Primitiva, trad. de Alfredo Palacios, México, Ediciones Pavlov, DF, 1977.), sociólogo, antropólogo e historiador norte-americano, depois de dedicar toda a sua vida ao estudo da sociedade e do progresso humano, tanto que intitulou a sua obra-prima de Investigações sobre o na 497 do seu monumental livro, dá-nos o seu julgamento da história e da civilização: “Desde o advento da civilização, chegou a ser tão grande o aumento da riqueza, assumindo formas tão variadas, de aplicação tão extensa, e tão habilmente administrada no interesse dos seus possuidores, que ela, a riqueza, transformou-se numa força irredutível, oposta ao povo. A inteligência humana vê-se impotente e desnorteada diante de sua própria criação. Contudo, chegará um tempo em que a razão humana será suficientemente forte para dominar a riqueza e fixar as relações do Estado com a propriedade que ele protege e os limites aos direitos dos proprietários. Os interesses da sociedade são absolutamente superiores aos interesses individuais, e entre uns e outros deve estabelecer-se uma relação justa e harmônica. A simples caça à riqueza não é finalidade, o destino da humanidade, a menos que o progresso deixe de ser a lei no futuro, como tem sido no passado. O tempo que transcorreu desde o início da civilização não passa de uma fração ínfima da existência passada da humanidade, uma fração ínfima das épocas vindouras. A dissolução da sociedade ergue-se, diante de nós, como uma ameaça; é o fim de um período histórico – cuja única meta tem sido a propriedade da riqueza – porque esse período encerra os elementos de sua própria ruína. A democracia na administração, a fraternidade na sociedade, a igualdade de direitos e a instrução geral farão despontar a próxima etapa superior da sociedade, para a qual tendem constantemente a experiência, a ciência e o conhecimento. Será uma revivescência da liberdade, igualdade e fraternidade das antigas gens, mas sob uma forma superior”.

A paz de todos com todos, paz com igualdade, é o que se espera no ansiado dia da parusia, a que se referem os monoteístas, mas sem qualquer supremacia, como se supôs no livro de Daniel. Não há Deus de um povo só. O Deus budista, cristão e muçulmano é um só e universal, pois somos todos iguais.

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