A crise social

Os mitos desnudos da ganância financeira das corporações financeiras, em conluio com os governos, são um fato espetacular.

No planeta, o indivíduo protesta no corpo vivo das multidões. O mundo está mudando. A reverberação social global que une Israel e países árabes, Madri e Nova York tem origem nos tsunamis econômicos iniciados em 2007. Tudo começou com Nixon, atraído por Xiaoping, a combinar com os chineses investimentos maciços em troca de empregos. A vantagem da América estava em aumentar na China a produtividade de sua indústria, sem regulação, direitos sociais, mão de obra barata e baixa tributação.

Bastava-lhe a indústria pontocom, a construção civil e os serviços financeiros totalmente desregulados. A Europa fez o mesmo. Foi para a China e uniu-se a Wall Street. Deu certo no começo e depois veio o dilúvio, ajudado por Bin Laden, puxando os EUA para duas guerras caras, impossíveis de ser ganhas, e pela absoluta incompetência dos neoconservadores americanos, com seus delírios de supremacia. Falavam do século americano (21) como Hitler do Reich de 1 mil anos em 1939, na Alemanha. Bastaram seis anos para Hitler suicidar-se e sete para Bush entrar em desuso. O endividamento dos EUA, assim como da Europa, levou os governos a aceitar a criatividade da banca surgida da desregulamentação financeira, hoje denunciada como a causa final da grande crise (por alavancar o processo de emissões de dívida, públicas e privadas).

Ora, esse processo – quando estourou – desnudou o enriquecimento estritamente falso dos EUA e da Europa comunitária. É que o crédito desmedido e sem garantias escondeu os déficits fiscais e externos dos EUA, e do Estado do bem-estar europeu. Mas sem eles não haveria emergentes (Brasil, Rússia, China, Índia) no fluxo dos múltiplos financeiros. E, sem uma China superindustrializada, superoperosa, com uma população descomunal, os países periféricos e ricos em óleo, comodities minerais e agronegócio não teriam se mantido livres da maciça especulação financeira e imobiliária no Atlântico Norte.

Quando os devedores pararam de pagar, os bancos trancaram o crédito e cobraram a fatura dos governos que jogaram trilhões de dólares e euros para salvá-los e preservar a liquidez do sistema. Ao cabo o crédito era o segredo do sucesso, um castelo de areia. De repente o mundo travou. A consequência foi transformar os créditos podres dos bancos no capitalismo central (EUA e União Europeia) em dívida soberana dos EUA (US$ 15 trilhões) e de outras nações europeias (trilhões de euros e libras esterlinas).

Num segundo momento, os bancos e hedge funds voltaram-se contra os países europeus em que a dívida soberana ultrapassava o PIB com folga, economicamente frágeis, e exigiram maiores juros pelo risco de carregar seus papéis. A dívida pública alemã e francesa é elevadíssima, mas são países economicamente fortes. Se os ingleses estivessem na Zona do Euro, estariam ao lado das ameaçadas Espanha e Itália. Os EUA são uma federação, pouco importando se o estado da Califórnia está sem dinheiro ou o Delaware seja pobre. A União responde por todos. As corporações privadas são ricas.

A UE é uma federação de Estados soberanos que podem se endividar e emitir títulos, mas não emitem moeda, função do Banco Central Europeu. As dívidas são em euros, mas a responsabilidade é nacional, um complicador político a forçar os Estados europeus confederados a jogar dinheiro na praça para salvar as carteiras dos bancos recheadas de títulos soberanos em default técnico. Incapaz de ser uma federação ainda que altamente descentralizada, a solução real, a União Europeia debate-se para salvar a Grécia (2,9% da economia do grupo), o que fortalece o dólar, que força os EUA a desvalorizá-lo com o relaxamento das emissões, que encarece as commodities e o custo de vida no mundo inteiro inclusive na China, que desvaloriza o iuan para proteger as exportações.

Os seres humanos comuns, 80% das populações, descobrem de repente que os ricos e as corporações foram protegidos pelos governos e eles perderam dinheiro, empregos, direitos e esperanças. Passaram a perceber o quanto foram enganados com slogans vazios, nacionalismos, promessas de bem-estar e guerras inúteis. E por isso protestam, embaçando fronteiras, credos políticos e causas religiosas. O sonho americano de ficar rico, a Europa do bem-estar, o islamismo dos conformistas estão em frangalhos. O Ocupem Wall Street transformou o seu charme em fedorento gueto, no coração do capitalismo. Esses movimentos espontâneos a sacudir o globo, fortemente reprimidos aqui e acolá, como no Irã, e controlados na China, por ora em crescimento, mas ameaçada, porque 70% do PIB mundial estará a zero (EUA, UE e Japão), trará consequências. Os mitos desnudos da ganância financeira das corporações, especialmente as financeiras, em conluio com os governos, democráticos ou não, são um fato espetacular. O mundo como o conhecemos agora jamais será o mesmo.

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